Bem, independente do que dizem as placas e os publicitários, pensar sobre a invisibilização das favelas e bairros de periferia em Natal me fez lembrar sobre como, nestes quase dezessete anos morando por aqui, ouço as pessoas se gabarem da bela e organizada entrada da cidade. Geralmente quem fala isso tem como referencial as incômodas imagens que nos recepcionam ao entrar na capital paraibana e, ainda mais, quando chegam ao Recife. É comum ouvir: “Afff, só tem favela”. Morei durante um ano em Recife e, apesar de ter adorado a experiência, tenho de concordar, a cidade parece nos abraçar com sua indisfarçada pobreza. Há poucos anos a Prefeitura do Recife tentou realocar os moradores da Favela do Coque, mas estes não aceitaram a oferta de “casas populares” afastadas do lugar onde moravam há anos, o que afetaria bastante as redes de solidariedade e estratégias de ação desenvolvidas em décadas de convivência.
Não saberei explicar detalhadamente os motivos de não ver tanta resistência (se é que se pode chamar assim) semelhante em nossa cidade. Talvez se dê, ao menos em parte, pelos tão diferentes processos históricos, sociais e culturais que deixaram marcas indeléveis na formação de natalenses e recifenses. Mas, com exceção de alguns representantes do Movimento Ocupa, podemos observar facilmente (quem quiser) um processo de invisibilização social e demonização desta pobreza indesejável aos olhos em nossa cidade. Evidentemente isto não é “privilégio” nosso, pode ser observada na maioria das grandes cidades ao redor do mundo.
No entanto gostaria de dar destaque para um caso bastante recente ocorrido em nossa cidade: o desaparecimento, quase que por mágica, da “Favela do Fio”, localizada na Avenida Mor Gouveia, próximo a Rodoviária… Aqueles que costumam vir seja de carro ou de ônibus, da Zona Norte da cidade pelo KM-06, em direção a Cidade Esperança, certamente passavam em frente a região. Pode-se se dizer que era a única das favelas natalenses que gozava de grande visibilidade.
Como passo semanalmente ali em frente, estava acostumado a ver naquele lugar um pequeno cenário, uma miniatura de qualquer grande favela, com seus esgotos a céu aberto, suas carroças de frete e crianças correndo descalças pelas vielas. Como antropólogo voltado para questões urbanas, mais especificamente para os efeitos da legitimação da pobreza em nosso país, sempre tive vontade de ir até ali. No entanto, se quiser conhecer a população residente, terei de primeiro investigar para onde ela foi realocada.
Não foi surpresa, apesar do choque, ter passado por ali a noite e ver ainda a favela, com seus barracos ainda fragilmente de pé e, no dia seguinte, encontrar apenas um cenário desertificado, apenas uma mistura de areia e lixo, únicos remanescentes, como que anunciando o desenraizamento das pessoas e casas dali . O que ocorreu? Mais uma ação bem sucedida da nossa atual prefeitura, que não diferente das outras, mostra seu empenho em tirar os “indesejáveis” das vistas dos “cidadãos de bem”, pessoas que produzem – “úteis” –, merecedoras do exercício da cidadania, compreendida aqui enquanto o usufruto dos direitos civis, políticos e sociais (mas que acima de qualquer coisa são “bons consumidores”). Estes, quando não desconhecidos, aparecem como completamente inatingíveis a maioria da população, especialmente aos grupos que ocupam os já referidos “lugares de relegação”, como chama o sociólogo Pierre Bourdieu, exemplificados aqui com a já extinta Favela do Fio, lugares abandonados pelo Estado em seu exercício de um “descaso planejado”.
Para esses grupos valem, cada vez mais, apenas os deveres do cidadão (vide como ouvimos falar em cidadania, principalmente, durante o período eleitoral, apenas quando a população mais miserável é chamada ao “exercício da cidadania” ou convidada a “festa da democracia”), conseqüentemente são eles quem mais sentem o peso do nosso pesado Código Penal.
Também não foi surpresa ouvir de outra aluna que teve “uma pontinha de alívio” quando viu que a favela não mais existia ali. Ela explica, meio sem graça, que tinha muito medo quando passava ali e via todas aquelas pessoas pedindo dinheiro nos carros em troca, ou não, de uma lavagem de pára-brisas… Tenho certeza que esse “alívio” não foi sentido só por ela… Pelo menos ela não exerceu, dessa vez, a hipocrisia social, presente no discurso politicamente correto, que sempre nos impele a não falar o que se pensa.
Lamentável, no entanto, perceber todo o ódio e preconceito de classe contido em seu discurso que, salvo as devidas proporções, faz coro com o discurso daqueles jovens que atearam fogo no índio Galdino: “Pensávamos que era apenas um mendigo”. No fim das contas tanto o comentário da minha caríssima discente como o desses distintos cavalheiros apontam para a mesma coisa: limpeza social.