Aos olhares curiosos, e de certa forma treinados, certos lugares e/ou pessoas que passam despercebidos para a maioria chamam atenção de forma bastante peculiar. É um tanto obvio que não se pode estar sensível a tudo e a todos a todo instante, mas de acordo com a construção de cada sujeito, uns se encaixam naquilo que chamamos de “mais sensíveis” – Não creio que seja esse o meu caso, mas vez ou outra sou agraciado por uma experiência dessas, tão comum a outros.
Bem, num desses dias fui surpreendido por uma figura que muitos considerariam exótica, mas que, ao menos, no ambiente do alecrim – Aquele frenesi eterno - é curioso observar que tal figura já fulgura como parte do cenário. O ser observado – um ser humano sem duvidas- certamente se adéqua à idéia que temos do louco, aquele que parece fugir a Ordem social por motivos que vão da forma se portar em relação aos outros – muitas vezes como se estivesse só no mundo – até a idéia produtivista de inútil ou útil – O louco é um ser inútil, não vende sua força de trabalho....e todas essas idéias que a modernidade – seja lá como se defina isso – inventou.
Antes de qualquer coisa – para não ser tachado de mal educado – preciso apresentar-lhe o tal “louco”. Por não saber seu nome – Ainda não nos apresentamos formalmente – vou chamá-lo de Fred. Pois bem, nosso amigo é um homem alto, por volta de 1,87, cabelo sempre raspado, moreno claro (Não entendo bem essa classificação...Será cor de burro quando foge?). Certamente se encaixa no que chamamos de “porte atlético”. Pois bem, este ser vive à margem do nosso mundinho de tons cinzas – Mas que insistimos em pintar de rosa - , mora numa calçada, tendo, por isso, como despertador os pés dos que passam ao seu lado. As vezes penso: Será que já pisaram nele? Não sei, mas qualquer dia desses é bem capaz que isso ocorra. Também contribuem para o seu despertar os roncos desordenadamente orquestrados dos veículos automotivos que concorrem, também ali, pelo raríssimo espaço de locomoção e, muito mais, pelas vagas. Fred, ao acordar, geralmente, fica sentado, mergulhado em um mundo, para nós, intangível. Ele, ao contrário de outros seres humanos, não possui a ambição de ser um vegetal ambulante – Alimentar-se de luz – sente fome. Conclusão um tanto obvia, eu sei, mas que só pôde ser atestada quando presenciei como se dá o seu desjejum. Fred se dirige às lixeiras... É importante ressaltar que não se trata de qualquer lixeira, mas aquelas localizadas ao lado das bancas do lado do Teatro Sandowal Wanderley, onde são vendidos aqueles saborosos salgados lights ao preço simbólico de R$ 0,50. Ele encontra salgados “bons”, comidos apenas pela metade. Mas, como a maioria de nós, nosso protagonista não gosta de comer “no seco”... Por tanto pega sua garrafinha plástica, que, certamente, serviu para alguém tomar água mineral um dia – e vai juntando os restos dos refrigerantes nos copos jogados nas mesmas lixeiras...Chega a ser bonito o efeito causado pelas misturas de cores – refrigerante de uva + laranja + guaraná + cola = sei lá, nunca fui bom em misturas assim, mesmo(Sempre dava um jeito de enrolar nas aulas de arte, e quando não o fazia, sempre saía um desastre qualquer...) – ele pega somente o suficiente para encher a garrafa... Pronto! Está feito o seu café da manhã...Mas sua colheita matinal não pára por ai, Fred, como nós, também tem seus vícios...Com um saquinho transparente em mãos ele vai à caça das inúmeras, porém ignoradas, “píubas” de cigarro espalhadas pela rua, que conservam um “restinho” do fumo nicotinizado. Ele apenas desmembra-as e deposita o fumo para a confecção do seu cigarro. Aquilo que não nos serve muitas vezes é tratado como um prato cheio para outros – Vede como estão cheios os lixões por nós produzidos... Mas não reparemos nas moscas, mas nas pessoas que dali se alimentam.
Apesar de achar que sabia de muita coisa – Tola ilusão - sobre o que, até aqui foi falado...Fred me conduziu a algumas reflexões . Ele é “o louco” por comer, beber e fumar o que não queremos...Agimos com asco, nojo e indiferença com ele e com suas atitudes “sebosas”. Aqueles – Eu, você (nós?)... - que se auto-reconhecem e são reconhecidos como civilizados – Como se tal coisa existisse – jogam todas as coisas fora e não se incomodam por um semelhante que dorme pelas ruas (E mesmo de lá tentamos enxotá-los com uma arquitetura sem coberturas, ou que mais parecem bunkers, para que não tenham como se refugiar das chuvas e do frio -, “Que se danem”, é o que dizemos). No fim das contas, tudo isso, e muito mais, me leva a seguinte pergunta: Fred é louco. E nós o que somos? Nos matamos todos os dias, pisamos uns nos outros e justificamos isso com a nossa busca por felicidade...Os governos mundiais - para justificar seus interesses econômicos – falam em busca por paz e se empenham em guerrear com os demais. E a esse derramamento de sangue desenfreado se dizem guiados por Deus – Lamentável...Tudo isso me parece um circo dos horrores, onde as atitudes de Fred parecem as mais lúcidas...Diante disso sou obrigado a sentir uma certa inveja dele...Porque se ser civilizado é isso...viver em prol de um produtivismo desenfreado, cultuando o cronos, e matando gente que nem conheço, seja com violência física ou simbólica, o melhor é ser louco...De repente não como Fred, mas como aquele que se livra das correntes e volta para contar aos amigos que todos, inclusive ele, viviam um falso real, viviam em meio às sombras... Carecemos – Nós, a humanidade – de uma loucura que faça sentido em meio a tanta razão sem sentido...